sábado, 12 de março de 2011

A APOSENTADORIA DO DALAI LAMA.


Líder budista anuncia a intenção de ceder seu papel político. O que isso significa para a causa tibetana?

Eliseu Barreira Junior

Dalai Lama continuará como líder espiritual. Março é um mês especial para os tibetanos. Marca o aniversário da fracassada revolta do Tibete contra a China, que levou o Dalai Lama a se exilar no norte da Índia em 1959. É ainda o mês em que tipicamente ocorrem protestos na região, como os que chamaram a atenção do mundo em 2008, às vésperas das Olimpíadas de Pequim. Na semana passada, março entrou também para a história como o mês em que Tenzin Gyatso, de 75 anos, o 14º Dalai Lama, anunciou oficialmente a intenção de ceder seu papel político no governo do Tibete no exílio a um líder “livremente eleito” pelos tibetanos. Em comunicado divulgado na internet, ele disse que pedirá ao Parlamento, que se reunirá na segunda-feira (14), as alterações necessárias na Constituição para tornar possível seu desejo de transferir a autoridade política. Na prática, porém, a escolha de uma nova geração de líderes não significará a saída de cena do principal ator da causa tibetana. Com a decisão, o Dalai Lama antecipa sua sucessão política e mostra por que continuará tão influente.

Apesar da renúncia de seu papel político, o Dalai Lama permanecerá como o principal líder espiritual do budismo tibetano - ele é considerado por seus seguidores uma reencarnação dos 13 lamas anteriores. Em 1950, após a China invadir o Tibete, ele acabou assumindo também o poder político. A invasão provocou a morte de 1,1 milhão de pessoas. No ano seguinte, os líderes tibetanos foram forçados a aceitar um acordo que garantiria a autonomia política e religiosa do Tibete, mas sob a condição do estabelecimento de bases militares e civis chinesas em Lhasa. A tensão entre as duas partes aumentou e, em 1959, os tibetanos organizaram o primeiro levante contra as forças chinesas. As manifestações foram repreendidas com violência e o Dalai Lama se exilou na Índia. Em Dharamsala, ele estabeleceu o governo do Tibete no exílio com traços democráticos. Desde 1960, uma assembleia tem sido eleita pelos tibetanos para representar seus interesses. Em 2001, Samdhong Rinpoche se tornou o primeiro primeiro-ministro a ser eleito.

Sinalizar o desejo de separar seus deveres políticos das tarefas religiosas, o Dalai Lama busca dar mais credibilidade à causa tibetana como um movimento democrático e aproxima os cerca de 5,5 milhões de tibetanos que vivem sob a ditadura chinesa dos políticos exilados. O religioso sabe que há um grande fosso entre as visões e valores da comunidade exilada e daqueles que vivem na China. “Os tibetanos que vivem no exílio entendem o que é democracia, mas os que estão sob o regime chinês não”, diz Tim Johnson, autor do livro “Tragédia em Crimson: como o Dalai Lama conquistou o mundo mas perdeu a batalha contra a China”.

A história mostra que os tibetanos não são contrários à democracia. Todos parecem aceitar o ideal democrático como uma norma. O budismo tem longas tradições democráticas, apesar do que se observa em Burma e no Sri Lanka, e os monges sempre elegeram pelo menos alguns de seus líderes. Mas como em qualquer cultura, os tibetanos têm ideias específicas sobre como a democracia deveria funcionar.

“Muitos deles, talvez a grande maioria, querem ver o Dalai Lama como um líder simbólico, porque eles temem que sua unidade e coesão sejam colocadas em xeque sem uma figura carismática tradicional”,
afirma Robert Barnett, diretor do Programa de Estudos Tibetanos na Universidade Columbia e ex-professor da Universidade do Tibete.

É por isso que o gabinete liderado pelo Dalai Lama divulgou um comunicado no qual expressou a “preocupação” do povo tibetano pela decisão do seu líder de ceder o poder político e se uniu às “súplicas” para que “não dê esse passo”.

O governo chinês demonstrou ceticismo diante das intenções do Dalai Lama. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Jiang Yu, disse que as palavras dele eram “um truque para enganar a comunidade internacional” e qualificou o governo tibetano no exílio como uma “organização política ilegal não reconhecida por nenhum país”. Ela afirmou ainda que a China não mudará sua política no Tibete. Em parte, essa reação negativa ocorre porque o Dalai Lama já havia dito várias vezes que se aposentaria, sem fazê-lo efetivamente. Além disso, o regime comunista sabe que mesmo que o Dalai Lama desista de seu papel político, não significa que ele deixará de percorrer o mundo para se encontrar com os principais líderes mundiais para falar da causa tibetana – aliás, foi assim que sua figura alcançou reconhecimento mundial em mais de meio século de exílio. A mudança não reduzirá, portanto, a pressão que o governo chinês sofre, muito menos mudará a forma como trata a região.

Mas não será impossível que uma nova geração política tibetana avance nas negociações por mais autonomia. Se conseguirem se tornar legítimos representantes dos interesses da população, os novos líderes poderiam ser até mais hábeis para levar sua mensagem. O fato é que a única chance que têm para fazê-lo é enquanto o Dalai Lama estiver vivo para endossar suas decisões. E ele sabe bem disso!

O componente teocrático de sua liderança é essencial para o povo. Sem ela, há um enorme risco de divisão da comunidade tibetana em diferentes grupos e interesses. Algo que a China adoraria que acontecesse. Como disse o líder religioso, seu desejo beneficiará os tibetanos “a longo prazo”. Ao endossar o surgimento de um sucessor na esfera política, o Dalai Lama revela que sua sabedoria vai muito além da esfera religiosa.

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